terça-feira, setembro 27, 2005

A saudade e o preço do mico.

Tem saudade que chega, assola como uma tempestade e se afoga nas turbulentas águas do cotidiano. Normalmente é despertada por uma imagem, uma frase ouvida de um anônimo ou por um perfume. Poucos sentidos me remetem tanto à saudade quanto o olfato. Posso até não saber o que determinada fragrância me faz despertar na memória, mas quando bate, acende meus arquivos com a força de um canhão de luz sem, contudo, definir o alvo focado. Aí vem aquela dorzinha no peito que dura até o sopro da brisa vinda do rio Pinheiros, me fazendo substituir inusitada nostalgia pela lembrança sempre viva do trânsito na Marginal.
E na velocidade da Marginal andam os dias, nos deixando ultrapassados, com cara de ontem. Lembro de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal do Brasil no fim dos anos setenta, onde ele revelava a sua perplexidade ao ver uma jovem sinalizando à distância, com o dedo indicador teclando o espaço vazio, um pedido de telefonema. O cronista se constatou ainda gauche na vida, ao lembrar que aquele sinal, caso partisse de sua mão, seria desenhando círculos imaginários ao redor do ouvido, numa clara referência aos telefones de manivela. E olha que a jovem se referia apenas ao telefone fixo de teclas. Celular na década de 70, só em ficção científica.
No último domingo me senti na pele do poeta. E o que é pior, com a idade que ele teria hoje. Fui ao Pacaembu com Lais - filha de 12 anos de minha mulher - e mais três amiguinhas da escola. Claro que elas não queriam me fazer companhia na torcida de uma partida de futebol. Era o show de Avril Lavigne, uma canadense pouco mais velha que elas, dona de uma voz arrebatadora e de um enorme talento musical demonstrado no piano, no violão e na bateria. Éramos 40 mil, entre adolescentes e pais. Eu, na implacável condição de tio, sem o charme e o assédio do disputado personagem da novela das oito, tive todas as imagens, frases e aromas possíveis para me sentir um velho. Só o que me consolou foi um senhor com cara de avô de duas saltitantes meninas. Semblante calmo, cabelos mais brancos que os meus, rugas pacientes na face e um tampão de algodão em cada ouvido.
Em determinado momento do espetáculo, de pé num degrau abaixo ao das garotas e tomado pelo clima de romantismo da música, me lembrei da apresentação de James Taylor no primeiro Rock in Rio. Impulsionado pela irresponsabilidade da saudade, lancei mão do meu isqueiro e comecei a dançar lentamente ostentando a chama na mão erguida. Lais, envolta no adolescente e rubro manto da vergonha, me tocou o ombro: “pára de pagar mico, Orlando...” Quando me viro, quem quase morre de vergonha sou eu. Os milhares de adolescentes também erguiam e balançavam seus braços. Só que no lugar de isqueiros suas mãos ostentavam luminosos celulares, salpicando uma constelação de rara beleza nas arquibancadas do estádio. Restava agora esperar o fim do show e aplaudir. Mais os adolescentes que a cantora. Afinal, eles sabem melhor que ninguém: a Marginal não pára.

terça-feira, setembro 20, 2005

Qualitativas, Quantitativas e Enganos.

Há poucos dias uma jovem conhecida me informou sobre uma pesquisa que ela viu não sabe onde, encomendada não sabe por quem, com o objetivo de medir não sabe o quê nas vendas de telefones celulares. E me afirmou com toda a segurança que, baseado nessa pesquisa, as crianças de oito anos já estão preferindo um telefone celular a qualquer brinquedo, “juro, eu li na pesquisa” bradava minha convicta amiga diante do meu inevitável ar de incredulidade. O diagnóstico não seria surpreendente, considerando que a intenção de participar do mundo globalizado está chegando cada vez mais cedo às nossas crianças. Mas não consigo imaginar, numa pesquisa qualitativa um garoto de oito anos correndo para um celular, deixando de lado um colorido e sedutor helicóptero de controle remoto planando sozinho no ar. As pessoas ainda desconhecem, e muito, os mecanismos e os efeitos deste importante instrumento de avaliação e medição de interesses.
Ferramenta indispensável no marketing político e comercial, as pesquisas são bússolas responsáveis pela manutenção das naves políticas e empresariais nas rotas do sucesso. Mas sua eficácia depende fundamentalmente dos critérios. E se funcionam com políticos e empresas, naturalmente é de grande utilidade em qualquer setor.
Começo a imaginar se tivesse conduzido a minha vida através de pesquisas qualitativas. Conheci aquela que seria a minha mulher. Chamo o Ibope, monto um questionário, aprovo um grupo misto de 14 pessoas com a minha faixa etária, nove homens e cinco mulheres. Exponho a pretendente e as minhas expectativas. Avalio virtudes, defeitos e meço a adequação da futura esposa ao meu estilo de vida, aos meus recursos econômicos e às minhas aspirações quanto à vida conjugal. Uma semana depois viria o relatório do instituto: os atributos físicos da candidata agradaram todo o grupo, com elevado índice de aprovação. O que por um lado é extremamente positivo, e por outro negativo, posto que a ameaça de assédios sexuais poderia ser fator complicador na relação, caso o contratante da pesquisa seja ciumento. Quanto às qualidades domésticas, o lado feminino do grupo apresentou algum índice de rejeição. Já o masculino se portou com indiferença à questão, imaginando que os interesses do contratante sejam muito mais nos atributos de cama do que nos de mesa. A capacidade financeira da candidata teve aprovação de 100% do grupo, quando o nome do pretenso sogro foi revelado. Por fim, perguntado se casaria com uma mulher como aquela, todo o grupo, homens e mulheres, respondeu positivamente. Ok, a candidata à mulher da minha vida foi aprovada pela qualitativa e o casamento foi recomendado pelo Ibope.
Meses depois me caso, volto da lua de mel ainda lânguido, feliz e observo algumas pessoas me olhando de forma estranha. A princípio ignoro, mas conforme os olhares escusos e desconfiados vão se multiplicando e tornando constantes, começo a me preocupar. O que deu errado? É quando um amigo mais próximo me chama num canto e pergunta “que negócio é esse que tá todo mundo comentando que você se casou com uma sapatão?” Sem entender nada, continuaria padecendo da síndrome de patinho feio, até descobrir a origem de tão infundado e comprometedor boato. Uma secretária do Ibope, que por acaso me conhecia, leu apenas um lembrete que o moderador da pesquisa anotou no canto do questionário, “mulheres também se casariam com a candidata a esposa”. Pronto, foi o suficiente pra ela passar a mão no telefone e ligar pra outra fofoqueira de plantão aqui da agência: “você acredita que a mulher do Orlando é sapatão? Juro, eu li na pesquisa”.

quarta-feira, setembro 07, 2005

A arte de coabitar à distância

Dividir é uma difícil arte. Não sei se mais difícil que a propriedade de multiplicar, embora esta todos parecem ter e exercer com certa facilidade. Desde que dos céus veio a ordem para crescermos e multiplicarmos, temos obedecido com ilimitada devoção. Principalmente no que diz respeito à segunda parte do mandamento. Nem a ameaça da Aids, que já entra na terceira década, conseguiu nos inibir no delicioso cumprimento da ordem celestial. O problema é a conseqüência primária dessa gostosa multiplicação: a inevitável divisão. Pessoalmente, não tenho como negar uma certa queda por casamentos. Tive quatro esposas em 43 anos de vida. Filhos tive dois, Maíra e Otávio, hoje adultos, lindos e quase tão deliciosos quanto o momento das suas concepções. Devo confessar que com eles pouco dividi. Ao me separar das respectivas mães quando ainda eram muito pequenos, me separei também da maior parte dos encargos. Em contrapartida me privei de momentos mágicos que permeiam o crescimento e o desenvolvimento humano. Só a paternidade presente nos dá a senha de acesso a esta sedutora evolução.
Há algum tempo enamorado e ensaiando o que seria a quinta tentativa de continuar cumprindo a minha parte na obediência da ordem sacra, tenho feito exercícios diferentes para aprimorar meu talento na arte de coabitar, visando o sucesso pleno da relação. Inclusive ludibriando as conseqüências do start da multiplicação com eficazes contraceptivos. Afinal, o importante é que o amor, como diria Vinícius parodiando seu próprio verso, “seja infinito enquanto duro”. E, naturalmente, este duro se aplica a algo muito mais prazeroso do que a situação financeira da maior parte dos pais de família brasileiros.
Como dever de casa deste aprendizado, moro num apartamento na Vila Madalena a exatamente cem metros do prédio onde Sandra, minha mulher, companheira e absolutamente insubstituível na melhor parte deste milagre da multiplicação, vive com seus dois filhos, Lais e Júlio. Neste espaço, entre dois números da rua Harmonia, estamos os quatro, reaprendendo a dividir. Lais, 12 anos, me inseriu entre seus pouquíssimos escolhidos por quem divide seus apertados e recém adolescidos abraços, seus olhares reluzentes de cumplicidade e seu disputado espaço no painel de fotos onde hoje ostenta algumas imagens minhas na Europa. Júlio, cinco, incluiu meus ombros entre os poucos por onde divide o pouso terno do seu rosto sonolento quando é noite e suas pernas saltitantes em posição de cavalinho quando é dia. Sandra não dividiu. Dedicou inteira sua capacidade de fazer alguém se sentir amado.
Da minha parte, me sinto em dívida. Além do meu estoque de chocolates que passei a reabastecer diariamente, divido com as crianças minhas noites. Troquei os bares do bairro e horas de inútil escrita por olhares atentos a desenhos animados, comédias românticas em DVD, brincadeiras com lego e limitadas orientações em trabalhos escolares. E com Sandra divido as páginas de uma nova história que pretendemos não terminar. A tentativa de decifrar essa misteriosa sensação a que insistimos em chamar saudades do futuro.

terça-feira, setembro 06, 2005

43 ANOS

Para Sandra Freitas

Nos últimos meses tenho sorrido pouco. Tenho tido poucos amigos. Freguentado pouco os bares. Abraçado poucas mulheres, acariciado muita poesia. Nos últimos meses tenho lido poucos livros, navegado poucas noites, bebido pouco, muito pouco uísque. Tenho afogado pouco os dias difíceis. Também é verdade, já bebi piores. Tenho me afastado de vícios, pouco alcalóide na pouca aflição. Tenho caminhado pouco, tenho corrido muito nas avenidas da solidão. Tenho pensado em ir ao dentista, ao analista, adio muito as farmácias. Tenho ganhado algum dinheiro. Tenho gastado muito mais. Tenho lido poucos jornais, tenho preferido jardins e indecifráveis desenhos infantis. Mas tenho olhado o trânsito, os olhares desesperados – são tantos – dos motoristas. Tenho prestado atenção nas crianças, na paciência das calçadas, na indiferença das babás, na aflição dos passantes, na ternura dos namorados, na doçura dos enganados, no sal da pele dos traídos. E entre janelas escusas, saias ventiladas, árvores pedantes, andorinhas em algazarra, espero sua chegada. Enquanto na varanda minha alma, agora diferente, morre de rir.