terça-feira, outubro 25, 2005

Do rotundo Não ao vôo rejuvenescido

Há cinco ou seis anos, recebi da Saldiva, uma agência de propaganda, um cartão de Natal que, ao contrário dos muitos que recebo todo ano, me chamou a atenção a ponto de não esquecer. O texto dizia que a águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Só que para isso ela precisa tomar uma difícil decisão quando chega mais ou menos à metade da sua expectativa de vida. Com esta idade, as unhas estão compridas e flexíveis, não conseguem segurar suas presas. As asas estão envelhecidas e pesadas por causa da espessura das penas. Seu bico está demasiadamente curvo, impedindo de se alimentar. Neste momento a águia tem que decidir: morrer ou se submeter a um doloroso processo de renovação. A que não se entrega se recolhe a um ninho no alto de uma montanha, próximo a um paredão e, solitária, inicia um ritual que vai durar 150 dias. Começa batendo o bico na pedra até que ele caia. Aí, o pássaro é obrigado a esperar que o novo bico apareça para arrancar, em autofagia, as unhas e as penas obsoletas. E como se não bastasse, o rito de passagem ainda exige paciência para a espera do nascimento e desenvolvimento de novas unhas e penas. Cinco meses de sofrimento recompensado por mais 30 anos de vôo, de caça e de vida.
Se há veracidade biológica ou não passa de uma parábola eu não sei. Certo é que a coragem da ave me despertou a dedicação de uma boa dosagem de respeito.
Respeito que no último domingo, no referendo das armas, o brasileiro demonstrou exigir. Há cinco meses, parecíamos nos recolher ao alto da montanha, mortos de vergonha de nossas unhas e asas. Nos recolhemos de fato, mas não adiamos a batida do bico na pedra. Cada manchete de jornal era uma unha arrancada. Cada porrada no congresso era uma pena nova que nascia. Cada pronunciamento hipócrita dos governantes, a raiva como analgésico para a dor generalizada.
Ainda não voltamos a voar. O rito não está concluído e há dores por sofrer. Mas, ainda que em solo, a demonstração de civilidade, de seriedade, de rejeição ao secular “jeitinho” - velado nas intenções do governo - está definitivamente estampada numa madura e silenciosa inquietude.
Ao Estado cabe o desconforto da perplexidade. Ao cidadão o resgate da autoconfiança. Vale a pena esperar pelo vôo rejuvenescido, imponente e sempre nobre dessa ave a que chamamos, hoje com mais orgulho, de Brasil.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Dedicatórias

Não me lembro com quem aprendi que dedicatória não se escreve em livros de autoria alheia. Sei que depois de aprender, nunca mais escrevi. Que ousadia é essa que permite a nós, simples leitores, escrever na página de rosto do livro dos outros? De fato, dedicatórias só deveriam ser permitidas ao próprio autor.
Porém, contradição à parte, pouco se compara à alegria de ver uma manifestação de carinho, amizade ou amor nas primeiras páginas de um livro. E se tal homenagem vem de quem escreveu a obra e imprimiu seu nome à frente do texto, a felicidade é multiplicada pela tiragem da edição. O problema é que alguns escritores homenageiam namoradas, paixões que não sabiam passageiras, e quando passam, não querem o registro nem como referência de inspiração. Normalmente por mágoa ou desilusão. Aí, a sensação de “tarde demais” ganha dimensões vitalícias. A obra leva para a eternidade um nome que nem uma centena de novos amores consegue apagar.
Conheço o exemplo de um escritor já falecido, com quem tive a oportunidade de dividir a mesa de um bar em Belo Horizonte, na década de 80. Autor de uma obra extensa, com mais de 40 títulos publicados e traduzidos em grande parte do mundo, aquele ícone da literatura brasileira estava acompanhado da esposa, com quem era casado há tempo suficiente para afirmar que não confiava em produto local: para onde viajava levava seu uísque e sua mulher. Madura, mas dona de um corpo de fazer inveja a muita top model da época, aquele metro e noventa de mulher, com um par de olhos azuis capaz de ofuscar o céu da capital mineira, chegou, na juventude, a ser imortalizada numa música de Tom Jobim. Imagine em quantas páginas ela não foi citada e o quanto da obra desse escritor não foi ofertado a ela.
Pouco depois deste encontro me mudei para a Europa e nunca mais estive com o casal. De volta ao Brasil, quase dez anos mais tarde, li com indisfarçável surpresa uma discreta nota na imprensa sobre a separação dos dois. Da perplexidade ao susto: e agora, o que fazer com as citações, com as dedicatórias, com a desconfiança quanto aos produtos locais? Foi quando aprendi que se declarar amor é difícil, desfazer a declaração é tarefa para uma junta de alquimistas.
Brilhante e determinado como foi em toda a sua carreira, o coerente autor não vacilou. Solitário e de posse apenas de uma caneta revisou todas as suas crônicas, contos, novelas e romances, eliminando cada uma das citações à ex-companheira. Só assim se sentiu à vontade para entregar ao editor a última versão das suas obras completas. Quanto às edições anteriores, não havia o que fazer. Deixou ao tempo e às traças o encargo de amarelar, corroer e fazer desaparecer definitivamente todas as letras da sua decepção.

terça-feira, outubro 11, 2005

A transposição do ciúme

Dorme Ponte, Pernambuco, Rio, Bahia
Só vigia o ponto negro, meu ciúme.
Caetano Veloso


Quem já pegou Gaiola em Pirapora e desceu o São Francisco sabe quanta poesia espera nas margens para desaguar em versos. Quanta gente entre Minas e Pernambuco pesca, brinca, trabalha, reza, ama, come e bebe no Velho Chico? Quem por esse leito navega, entende melhor o sentido do amor, aprende a gostar de maneira exagerada, aprende a se apaixonar. Quem nunca sentiu sequer um respingo no rosto das gotas deste rio talvez não compreenda a extensão disso. Para estes eu recomendo uma viagem a Pirapora, Juazeiro, Barra ou Petrolina. Em compensação, quem já se banhou naquelas águas tão cantadas, descritas e pintadas por artistas de todo o mundo, vai entender e me dar razão. É como se o santo que dá nome ao rio deitasse sobre nós uma mágica benção. Depois o sentimento é de perfeição. Algo assim como unhas já nascendo cortadas, domingo sem musiquinha do fantástico, feriado sem engarrafamento na serra, CD sem invólucro de plástico. Utopias nas quais só acreditamos quando em exercício daquele delicioso estado de idiotice, permitido apenas aos apaixonados. E acredite, o São Francisco nos encharca desta sensação. Mas o efeito da abençoada umidade também tem prazo de validade. Aí é como se o amor repousasse oscilante, como um diamante, entre a areia e o cascalho, no fundo, adormecido sob o manto caudaloso da memória.
Por isso, compreendo a resistência dos barranqueiros à transposição do São Francisco. Compreendo, embora já interrompida, a greve de fome do Bispo de Barra. Compreendo o medo de quem cultua a vida àquelas margens. Porque do amor, é inevitável, nasce o ciúme. Como admitir a divisão do velho e amado Chico com a gente carente da caatinga do Norte? Quem garante que o rio não vá se encantar, no fim da sua vida, por outras terras e deixar secar lindas e antigas histórias? Porque o velho amante está fraco, está doente. Era preciso recuperá-lo, dar a ele novo fôlego, ampliar a longevidade, antes de pensar em dividir suas águas.
Todo ciúme deve ser tolerado. Seja dos enamorados de um rio ou daqueles que não têm sossego, que controlam seus parceiros pelo celular, pelo msn, invadem e-mail, cheiram cuecas e calcinhas, viram mesas de bares, partem pra porrada em público por conta de troca de olhares que na maioria das vezes não ocorreu. Tudo porque, como diria Caetano, “o ciúme lançou sua flecha preta”.
Ciumento confesso, mas adestrado pelas rédeas da psicanálise, não me lembro de chegar a extremos. E se cheguei, peço desculpas aos coadjuvantes e espectadores de doloroso espetáculo. Porque o ciúme não deve ser manifestado. Deve no máximo ser detectado em silêncio. Sofrido num desenho íntimo. Tão tênue como o nascimento do amor no leito de um rio condenado. Tão discreto como uma marca d’água, para sempre no coração.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Quando a luz dos olhos teus resolve me matar.

Poucas formas de expressão têm tanto poder quanto o olhar. Seduz, adverte, duvida, acredita, diz que ama, diz que odeia, diz que é infantil, que é maduro, delicado, astuto e até fuzila. Provoca dores incomensuráveis quando definitivamente se apaga. Eufóricas alegrias quando pela primeira vez se acende. E não há nada mais silencioso, completamente desprovido de sons, e ao mesmo tempo tão escandaloso, carregado de verbos, quanto o olhar. Contudo, não há notícia de óbito provocado pela versátil janela da alma. Imagino o furo de reportagem: “Engenheiro assaltado e morto por olhar fulminante”. A insólita manchete faria a festa da redação e, claro, do departamento financeiro de qualquer jornal. Mas, há aqueles olhares com pouca luz por tristeza, excesso de trabalho ou até mesmo por farra na noite anterior. Para estes há um recurso, o colírio. O que poucos sabem é que o eficaz remédio para os olhos pode ser fatal ao coração. No início da semana o jornal mexicano El Universal noticiou a prisão de seis prostitutas na Cidade do México acusadas pela morte de cinco dos seus clientes. A arma do crime? Um inofensivo colírio. As meninas descobriram que as gotas utilizadas por oftalmologistas para dilatar as pupilas dos pacientes provocam incontrolável sonolência quando ingeridas com álcool. Assim, aproveitando o deslumbramento dos incautos, pingavam o medicamento na bebida, esperavam a transformação do seduzido em Cinderela, e roubavam até as cuecas. Porém, elas não contavam que a tal mistura pudesse levar à morte pessoas com problemas cardíacos. E o curioso é como tudo foi descoberto. Um sobrevivente ao golpe contou à polícia que vigiou seu uísque o tempo todo. Mas não percebeu que a garota, na impossibilidade de acesso ao copo, pingou o medicamento nas pontas dos seios. Quando acordou se sentia dopado, de ressaca e muitos pesos e dólares mais pobre.
De fato vivemos tempos complicados. Se não bastassem a Aids, a Hepatite C e outras DSTs, agora temos o colírio assassino. Imaginem se este desavisado não se sentisse atraído por tão sedutores atributos femininos. Onde a mulher pingaria as gotinhas? Deixo as possibilidades por conta da preferência de cada um. E quanto às prostitutas mexicanas, melhor continuar utilizando as janelas da alma. Só comer com os olhos.