quarta-feira, abril 19, 2006

Desventuras por terras de Palocci

Deixei este espaço para as farras de fim de ano na Bahia, visita ao terreiro, reconciliação com os orixás. Depois Rio, Búzios e é Carnaval. Desci Harmonia e subi Purpurina atrás de tradicionais bandinhas, rodeado de intelectuais decadentes e dezenas de vem-ni-mim-que-eu-sou-facinha. Estava de volta à Vila Madalena.
Passados blocos, corsos e temporadas de trabalho em Manaus, desembarco na que seria minha última festa antes de reincorporar este escriba. Eram as bodas de ouro dos tios da minha mulher. Três dias de festas em Ribeirão Preto. O primeiro, em plena sexta-feira da paixão.
Chegamos de São Paulo direto para a casa dos velhinhos onde tive a primeira surpresa. Na rua uma pequena multidão se aglomerava. Muitos com copos de cerveja, alguns com um prato de macarrão. Parentes e amigos recém-chegados de uma viagem de quatro horas de ônibus. Passageiros eufóricos e seguros da hospitalidade do casal idoso. O marido, perto dos 80 anos, só fazia chorar. Disseram que de emoção. Como não acreditei, ofereci minha solidariedade: se recebesse mais de 40 hóspedes em minha casa também estaria no mais copioso pranto.
Eu, minha mulher e as crianças poupamos o casal e nos hospedamos num hotel. Lá pelas dez da noite do dia seguinte demos início a maior aventura destes dias festivos. Encontrar o local da cerimônia principal. Para encurtar conversa, nos demos por perdidos em terras de Palocci, numa estrada deserta, escura e rodeada de mato por todos os lados. As crianças no banco de trás com olhos esbugalhados não arriscavam um único som. Minha mulher apreensiva segurava um ataque, não sei se de nervos ou de riso. Eu já me via assaltado e com o meu sigilo bancário quebrado. Quem conhece os labirintos e as rotatórias da cidade do ex-ministro, entende melhor as trapalhadas do governo.
Ainda não sei se por obra do acaso ou dos orixás, caímos suavemente na Anhanguera, onde os celulares funcionavam. Guiados pelo telefone por um primo chegamos ao salão de festas, também em área deserta, escura e cercada de mato por todos os lados. Cerimônia adiantada, todos emocionados, não demorou a ter início a circulação de muita cerveja. Um problema prático: não se podia fumar dentro do salão e era proibido deixar o ambiente com o copo. Assim, se eu bebesse não poderia fumar, se fumasse não poderia beber. Do lado de fora, dados a vícios como eu se reuniam num protesto silencioso, a seco e bem humorado contra o cada vez mais estreito cerco aos fumantes. Nossa agonia tinha o consolo de uma lua riscada por rara nebulosa.
Lá dentro, o jantar era servido numa mesa comprida, ao centro de um largo corredor em direção aos banheiros. Por volta de uma da manhã, quando todos os convidados se enfileiravam rente às travessas, me levanto e tento parecer discreto, passos medidos, no controle do meu lado maníaco obsessivo rumo ao WC. Com minha calça de linho branco, camisa verde claro quase nos joelhos, sandálias tipo franciscanas e meias brancas, só eu me convencia de que passava despercebido. Bem mais discreto do que eu, um camarão se deixou ficar no meio do caminho. Um passaporte para a agonia. Senti-me como no filme Matrix. Minhas pernas se projetaram para o alto, uma para cada lado, meus braços se abriram num enorme T, meu tronco girou em torno do próprio eixo e só o encontro dos meus 75 quilos com as tábuas muito bem enceradas do assoalho não foi em câmera lenta. Basta imaginar o som de um saco de batatas com o mesmo peso sendo atirado na madeira para ouvir a trilha sonora do meu tombo como um espetáculo particular. Por que isso só acontece naqueles raríssimos segundos de silêncio em que a música se cala e todos os assuntos se interrompem? Não faltaram os “ai, meu Deus, ele se machucou”, nem um engraçadinho que se antecipou com um “Já vai, cara? Ta cedo”.
Não me restava muito, além dos tapinhas como quem sacode a poeira imaginária da própria bunda dolorida. Reconheci a queda, mas a volta por cima é mais difícil. Que ministros escorreguem em Brasília e caiam por essas terras, tudo bem. Mas custava poupar um simples e honesto cronista?