segunda-feira, novembro 28, 2005

Nós somos do Clube Atlético Mineiro

Para Otávio Rangel

Agora há pouco a fazer. Prestigiamos, marcamos presença nos estádios, plantamos bandeiras nas janelas, nos carros, nas arquibancadas da alma. Choramos com a multidão angustiada, embora entalada, cantando “lutar, lutar, lutar, pelos gramados do mundo pra vencer”. Saía do coração aos pulos, entre o sobressalto e a dor. Entre a efêmera alegria de um gol e a agonia da inevitável derrota. Nossos abraços eufóricos perdiam a validade ao final de 90 minutos. Nossos sorrisos de esperança se desmanchavam como uma aquarela molhada, como a maquiagem borrada da torcedora que de iluminada e linda se apagava num perplexo e incompreensível luto.
Faltaram artistas no nosso circo. Faltou talento na nossa arte. Faltaram anjos no nosso céu.
A insensatez dos dirigentes foi mais poderosa que a nossa devoção. A luz de interesses escusos brilhou mais que nossas velas a tantos altares, brilhou mais que nossas promessas à tantos santos, ofuscou nossos olhares arregalados e incrédulos em tantos agoniados apitos finais. Viramos nossos símbolos de cabeça pra baixo, vestimos camisas pelo avesso. Atiramos rádios e angústias, como traídos, em quem teimou em não reconhecer nossa paixão. Ouvimos em silêncio lamentos e escárnios. Ainda não lambemos a ferida. Precisamos de calma.
Não que sejamos de calar, mas estamos roucos. Não que sejamos resignados, mas estamos frágeis. Não que sejamos covardes, mas como reabrir o peito à luta, quando endinheirados corruptos, qual generais de calças curtas, vestem na verdade indisfarçáveis armaduras da ambição pessoal e incendeiam em fogo amigo o nosso orgulho?
Agora é acalentar o peito, onde ainda brilha uma estrela amarela sobre o escudo listrado. Agora é clamar de novo aos santos, aos orixás, pastores da aflição, invocar a inquieta e eterna febre de Roberto Drummond para mantermos o que sobrou da chama acesa. Porque, ainda que na Série B, os furacões da astúcia, da falta de ética e da má fé não podem derrubar nossas camisas surradas, manchadas de luta e pranto, mas de sempre reluzente preto e branco a tremular no varal de cada atleticano coração.

quinta-feira, novembro 24, 2005

A lei seca e o voto dos chatos

Não tem jeito, a hora chega. Garçons entram em cena, levantando mesas, cadeiras, atirando água com detergente aos nossos pés, produzindo no ar o clássico cheiro de desinfetante barato com restos de cerveja. É a constatação do fechamento da casa. A hora, como diria Vinícius, “em que a tristeza aproveita pra entrar”.
Acho que os casamentos também terminam assim. É como se do assoalho do coração subisse a indefectível fragrância de fim de caso. Como solidificado pela angústia, o perfume vira um nó na traquéia, obstruindo parte da garganta. Não deixa passar nada sólido, só líquido, de preferência alcoólico. É a constatação do fechamento dos ouvidos, dos botões do vestido e da abertura de um ensurdecedor silêncio que, por menos que dure, é o que mais se assemelha à eternidade.
E eterna também é a associação da dor-de-cotovelo com o boteco. Dos menestréis da idade média aos poetas cibernéticos, todos um dia já deram uma de Reginaldo Rossi, esvaziando copos de desilusão e enchendo o saco do garçom.
É nestes chatos indefesos que penso, quando ouço falar na lei seca que querem decretar em São Paulo. Onde os padecentes da dor-de-corno vão buscar tratamento? Onde estará o rapaz do banquinho e violão, a quem os abandonados com cara de Paulo César Pereio que perdeu a Sônia Braga no filme Eu Te Amo adoram gritar: “toca aquela do devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu”.
Concordo que estes exemplares da boemia estão desaparecendo, como há muito já sumiram a música, o filme, o Pereio e a Sônia Braga. Mas pelos poucos que restam, não acho justo. Se a razão para fechar as torneiras etílicas da cidade são os índices de violência, convém pensar nestas vítimas do abandono. Por mais inconvenientes que sejam, elas merecem uma chance de sobrevivência. A noite não será a mesma depois da extinção dessa espécie.
De tão estropiados que ficam, estes desiludidos se tornam incapazes de qualquer agressão. Só violentam a paciência de quem os escuta. Por isso, se a lei seca é inevitável, proponho ao prefeito José Serra a criação de um salvo conduto, garantindo o mínimo de qualidade de vida noturna a essa gente. Seria permitido ao portador do documento, beber a qualquer hora do dia ou da noite, atormentar garçons e crooners, tomar quantas saideiras quiser e só ser colocado para fora do estabelecimento à luz da manhã, com palavras amáveis e pelas mãos de simpáticas e gostosas hosts.
Do contrário, a aprovação do prefeito pela classe poderá ser comprometida. E em ano véspera de eleição vale lembrar: bêbados apaixonados também votam.

sexta-feira, novembro 18, 2005

Coisas da Floresta

Gosto de Manaus onde no fim dos anos 90 cheguei a morar. Também foi no Amazonas que, por uma noite, tive o privilégio de ser hóspede, em Barreirinhas, de Thiago de Mello. Numa conversa que invadiu a madrugada, aprendi com o autor dos Estatutos do Homem que a floresta tem a sua própria ordem natural, diferente da que rege as coisas dos mortais. Isso explica determinados fatos só acontecerem naqueles lados.
Semana passada voltei à capital amazonense. Dessa vez, me hospedei num hotel cujos fundos davam para o Teatro Amazonas que, desde o ciclo da borracha, vem sendo palco de históricas apresentações e atrações de interesse mundial. Agora, a imponente casa abrigava a versão 2005 do Amazonas Film Festival, um tributo internacional à sétima arte, com pouquíssima repercussão aqui pelo sul.
Ao lado daquele ícone cultural da região norte há, resistente como uma espécie amazônica, o bar do Armando, um botequim onde as mesas dividem a calçada com sedutoras prostitutas. Ali eu costumava tomar litros de cerveja, trocando filosofias baratas de fim de século. Seria bom matar saudades.
Esqueci o cansaço de três horas e meia de viagem e desci, já tarde da noite. Quando adentro as paredes de desconfortável amarelo, com as únicas intenções de rever o Armando e tomar uma cerveja, dou de cara com uma figura que eu sabia conhecer, mas estava certo de que não era dali. Cabelos brancos, um pouco desalinhados, algumas rugas, olhos miúdos e visivelmente incomodado pelo calor, tomava sozinho uma bebida transparente e com muito gelo. Poderia ser um turista ou um cientista do hemisfério norte, como tantos que desembarcam na Amazônia, em busca dos mistérios da biodiversidade. Só que aquele rosto me era muito familiar. Fingi indiferença e fui falar com Armando que depois de um abraço festivo não se conteve: “Viu quem está aí? Dizem que é do cinema e famoso. Um tal de seu Roman”.
Gelei com a queda da ficha. Momentos depois concluí como natural a presença dele ali. Mas no instante só lembrei do meu anfitrião de Barreirinhas, que me alertou para fatos que eu só presenciaria em Manaus. “Coisas da floresta...”, me diria o poeta. Distraindo a minha aversão à tietagem, me aproximei do senhor pedindo licença e estendendo-lhe a mão: “Nice meet you, Mr. Polanski”.

segunda-feira, novembro 07, 2005

Ai de ti, Mulher-Gorila

Que me perdoem os muito modernos, mas a decadência é fundamental. Sou viciado no que fica ultrapassado sem perder de todo o glamour. Tanto que quando vou ao Rio, faço questão de me hospedar em Copacabana. Existe símbolo de decadência mais elegante do que o imponente Copacabana Palace?
Pensava que os charmosos passos do romantismo ultrapassavam em muito as fronteiras do bairro carioca. Acabei por descobrir que descer a ladeira com legitimidade e sem escorregar do salto é obra para perua internacional. Como Copacabana.
Semana passada fui a um Circo. Não um Grand Circo, com aquele cheiro característico, mistura de coco de elefante cansado com hálito de leão desdentado e urina de acrobatas entediados. Estes também dão verdadeiros shows de declínio nas curvas da modernidade.
O circo da vez tinha propriedades estranhas. A começar pela localização: rua Augusta, próxima à Consolação. Depois, sem animais. Descobri que circo moderno é assim, ecologicamente correto. A próxima surpresa foi o preço, 20 reais os adultos e 10 as crianças, o que naturalmente afastou a molecada genuína e grande parte da gostosa ansiedade preliminar.
Mas nem tudo estava perdido. A atração principal era um quadro que sempre tive vontade de assistir: Monga, a Mulher Gorila.
Disputada por circos mambembes dos anos 60, esta mórbida vedete povoou de terror os sonhos de muitas crianças da minha época. Confesso que no meu caso não passou de horror imaginário, porque nunca tive coragem de presenciar a tal metamorfose. Ouvia dizer que era jogo de luzes, truques primários. Mas, na dúvida, preferia manter-me seguro e distante de tamanha aberração.
Excitado por estar próximo à tardia satisfação da minha curiosidade, entrei e sentei na arquibancada de madeira que, para mais uma decepção, era coberta por uma longa almofada, proteção contra as fendas imortalizadas na piada do “senta que o leão é manso”.
Começa um espetáculo morno. As crianças, todas rosadinhas, com cara de quem come bifinho todo dia e habituadas a sofisticados jogos de computadores, não escondiam a intolerância ante os malabarismos ingênuos e trapézios tão baixos que redes de proteção tornaria a apresentação mais derrisória que as de David Copperfield depois do Mister M.
Quando a febre da expectativa já apresentava sinais de arrefecimento, anunciaram o tão esperado fenômeno. Monga, musa de antigos pesadelos, cúmplice da minha covardia, depois de décadas, estava prestes a me redimir. Um certo desconforto quase me pôs de pé a correr. Premonição de desilusão anunciada. Controlei. Afinal, era a última chance.
Rufam-se os tambores e meu coração dispara. Abrem-se as cortinas e fecham-se meus olhos, mais por adiamento do instante do que por medo. Quando abro, foco a mais patética das personagens. Até vestido colorido e peruca de sisal ela trazia. A Mulher-Gorila do século 21 não passa de um número cômico dos mais rudimentares. Um palhaço ensaiado para ridicularizar minha intenção, banalizar minha inútil tentativa de recuperar um passado. Quase me convence de que o palhaço não era exatamente ele.
Monga, a Mulher-Gorila que assustou, intrigou e habitou a fantasia da minha geração mudou.Tomou a direção do pedagogicamente correto, rezando mais nas cartilhas de Piaget do que nas de Zé do Caixão. Não me dei à paciência de avaliar a qualidade. Deixei o espetáculo antes do final, me sentindo ludibriado e com vontade de pegar a ponte aérea. Meu medo agora era outro. Não do sobrenatural, nem de ser o palhaço daquele sábado, daquele circo. Mas tive pavor de continuar a perder, principalmente tempo. Se a Mulher-Gorila já não existe nem entre o charme e a elegância das decadências, o que poderá acontecer quando eu voltar a Copacabana?