terça-feira, outubro 11, 2005

A transposição do ciúme

Dorme Ponte, Pernambuco, Rio, Bahia
Só vigia o ponto negro, meu ciúme.
Caetano Veloso


Quem já pegou Gaiola em Pirapora e desceu o São Francisco sabe quanta poesia espera nas margens para desaguar em versos. Quanta gente entre Minas e Pernambuco pesca, brinca, trabalha, reza, ama, come e bebe no Velho Chico? Quem por esse leito navega, entende melhor o sentido do amor, aprende a gostar de maneira exagerada, aprende a se apaixonar. Quem nunca sentiu sequer um respingo no rosto das gotas deste rio talvez não compreenda a extensão disso. Para estes eu recomendo uma viagem a Pirapora, Juazeiro, Barra ou Petrolina. Em compensação, quem já se banhou naquelas águas tão cantadas, descritas e pintadas por artistas de todo o mundo, vai entender e me dar razão. É como se o santo que dá nome ao rio deitasse sobre nós uma mágica benção. Depois o sentimento é de perfeição. Algo assim como unhas já nascendo cortadas, domingo sem musiquinha do fantástico, feriado sem engarrafamento na serra, CD sem invólucro de plástico. Utopias nas quais só acreditamos quando em exercício daquele delicioso estado de idiotice, permitido apenas aos apaixonados. E acredite, o São Francisco nos encharca desta sensação. Mas o efeito da abençoada umidade também tem prazo de validade. Aí é como se o amor repousasse oscilante, como um diamante, entre a areia e o cascalho, no fundo, adormecido sob o manto caudaloso da memória.
Por isso, compreendo a resistência dos barranqueiros à transposição do São Francisco. Compreendo, embora já interrompida, a greve de fome do Bispo de Barra. Compreendo o medo de quem cultua a vida àquelas margens. Porque do amor, é inevitável, nasce o ciúme. Como admitir a divisão do velho e amado Chico com a gente carente da caatinga do Norte? Quem garante que o rio não vá se encantar, no fim da sua vida, por outras terras e deixar secar lindas e antigas histórias? Porque o velho amante está fraco, está doente. Era preciso recuperá-lo, dar a ele novo fôlego, ampliar a longevidade, antes de pensar em dividir suas águas.
Todo ciúme deve ser tolerado. Seja dos enamorados de um rio ou daqueles que não têm sossego, que controlam seus parceiros pelo celular, pelo msn, invadem e-mail, cheiram cuecas e calcinhas, viram mesas de bares, partem pra porrada em público por conta de troca de olhares que na maioria das vezes não ocorreu. Tudo porque, como diria Caetano, “o ciúme lançou sua flecha preta”.
Ciumento confesso, mas adestrado pelas rédeas da psicanálise, não me lembro de chegar a extremos. E se cheguei, peço desculpas aos coadjuvantes e espectadores de doloroso espetáculo. Porque o ciúme não deve ser manifestado. Deve no máximo ser detectado em silêncio. Sofrido num desenho íntimo. Tão tênue como o nascimento do amor no leito de um rio condenado. Tão discreto como uma marca d’água, para sempre no coração.