quarta-feira, setembro 07, 2005

A arte de coabitar à distância

Dividir é uma difícil arte. Não sei se mais difícil que a propriedade de multiplicar, embora esta todos parecem ter e exercer com certa facilidade. Desde que dos céus veio a ordem para crescermos e multiplicarmos, temos obedecido com ilimitada devoção. Principalmente no que diz respeito à segunda parte do mandamento. Nem a ameaça da Aids, que já entra na terceira década, conseguiu nos inibir no delicioso cumprimento da ordem celestial. O problema é a conseqüência primária dessa gostosa multiplicação: a inevitável divisão. Pessoalmente, não tenho como negar uma certa queda por casamentos. Tive quatro esposas em 43 anos de vida. Filhos tive dois, Maíra e Otávio, hoje adultos, lindos e quase tão deliciosos quanto o momento das suas concepções. Devo confessar que com eles pouco dividi. Ao me separar das respectivas mães quando ainda eram muito pequenos, me separei também da maior parte dos encargos. Em contrapartida me privei de momentos mágicos que permeiam o crescimento e o desenvolvimento humano. Só a paternidade presente nos dá a senha de acesso a esta sedutora evolução.
Há algum tempo enamorado e ensaiando o que seria a quinta tentativa de continuar cumprindo a minha parte na obediência da ordem sacra, tenho feito exercícios diferentes para aprimorar meu talento na arte de coabitar, visando o sucesso pleno da relação. Inclusive ludibriando as conseqüências do start da multiplicação com eficazes contraceptivos. Afinal, o importante é que o amor, como diria Vinícius parodiando seu próprio verso, “seja infinito enquanto duro”. E, naturalmente, este duro se aplica a algo muito mais prazeroso do que a situação financeira da maior parte dos pais de família brasileiros.
Como dever de casa deste aprendizado, moro num apartamento na Vila Madalena a exatamente cem metros do prédio onde Sandra, minha mulher, companheira e absolutamente insubstituível na melhor parte deste milagre da multiplicação, vive com seus dois filhos, Lais e Júlio. Neste espaço, entre dois números da rua Harmonia, estamos os quatro, reaprendendo a dividir. Lais, 12 anos, me inseriu entre seus pouquíssimos escolhidos por quem divide seus apertados e recém adolescidos abraços, seus olhares reluzentes de cumplicidade e seu disputado espaço no painel de fotos onde hoje ostenta algumas imagens minhas na Europa. Júlio, cinco, incluiu meus ombros entre os poucos por onde divide o pouso terno do seu rosto sonolento quando é noite e suas pernas saltitantes em posição de cavalinho quando é dia. Sandra não dividiu. Dedicou inteira sua capacidade de fazer alguém se sentir amado.
Da minha parte, me sinto em dívida. Além do meu estoque de chocolates que passei a reabastecer diariamente, divido com as crianças minhas noites. Troquei os bares do bairro e horas de inútil escrita por olhares atentos a desenhos animados, comédias românticas em DVD, brincadeiras com lego e limitadas orientações em trabalhos escolares. E com Sandra divido as páginas de uma nova história que pretendemos não terminar. A tentativa de decifrar essa misteriosa sensação a que insistimos em chamar saudades do futuro.